Inventário da infância perdida
Um homem é feito na infância, aperfeiçoado na
adolescência e cristalizado na idade madura. Depois dos
quarenta a existência humana, a não ser para os
asiáticos, que têm o segredo da vida longeva e produtiva,
assinala realmente uma decadência interminável, até que
ela se torna insuportável: toda a razão da vida se
concentra em algumas coisas muito específicas, em
seres, sobretudo, e daí o conflito que se trava no interior
de cada ser humano quando aquilo que ele quis ser para
duas, três ou quatro pessoas — pois é nisso que se
concentra a nossa vida — deixou de ser o que realmente
se quis ser ou parecer.
Mas uma grande parte de nossa vida é desenhada
muito cedo, quando se inicia o que alguns românticos
chamam de aventura humana e que aos poucos vai-se
transformando numa incansável continuidade de
diminutas frustrações e pequenos embates corporais com
a realidade, frustrações que depois se transformam em
fontes de amargura.
(...)
O que é a infância, no fundo, senão um período de
nossa vida tal como nós o olhamos, depois de adultos: é
a versão que se sobrepõe, poderosa, sobre a realidade,
e essa versão, por mais suscetível de ser destruída pela
análise fria, é a que prevalece e guia nossos passos, por
anos intermináveis.
Todo mergulho na infância é ao mesmo tempo doloroso
e doce, como aqueles diminutos pratos chineses que
misturam gostos e odores. Assim, eu, por exemplo, me
lembro, quando faço muita força, de trechos de minha
infância: não consigo lembrá-la toda, ou largos períodos
dela, talvez porque o que foi doloroso nela tenha sido mais
abundante e mais avassalador do que o que foi doce.

ABRAMO, Cláudio. In: A regra do jogo. São Paulo

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